BE-LA Encontros Passados e Presentes: Histórias de vida na exposição

Hanne Cottyn

A exposição BE-LA Encontros Passados e Presentes foi pensada por ocasião do lançamento da rede ENCUENTRO, e deseja jogar luz sobre o fenômeno da solidariedade entre a América Latina e a Bélgica, hoje e no passado. Este artigo contém as histórias de vida apresentadas junto ao material de arquivos pessoais na exposição BE-LA Encontros Passados e Presentes.

Versão para o Português: Allan Souza Queiroz

 

 

Alma De Walsche sobre Ecuador:

"Recebemos mais do que pudemos fazer".

Entrevista e texto de Eva Willems

 

Alma De Walsche é uma jornalista especializada na América Latina. Inspirada pela Teologia da Libertação, partiu em destino ao Equador com seu marido Dirk Willems na década de 1980, onde viveram e trabalharam durante cinco anos em um pequeno povoado nos Andes. Após regressar à Bélgica, acompanhou os acontecimentos na América Central e América do Sul para a revista MO* e sua precursora, Wereldwijd.

 

Na década de 1970, a América Latina estava muito mais próxima de nós do que hoje. Os chilenos que fugiram do regime de Pinochet foram recebidos de braços abertos e houve um grande envolvimento em face do horror das ditaduras militares, por exemplo, no Brasil, na Argentina e na Bolívia. Para mim, ler o livro "Puedo ser tan libre", que conta a comovente história de vida da esposa do mineiro boliviano, Domitila Barrios, sob a ditadura de Banzer, foi um ponto de mudança. Eu tinha 23 anos. O centro latino-americano SAGO na Antuérpia e o centro boliviano desempenharam um papel importante na sensibilização das pessoas na Bélgica. 

Os importantes embasamentos ideológicos para o movimento foram as conferências episcopais de Medellín (1972) e Puebla (1979), inspiradas no Concílio Vaticano II que chama a uma maior solidariedade com os pobres. Nós mergulhamos na Teologia da Libertação e estudamos cuidadosamente os textos da conferência de Medellín. Nele, a violência dos movimentos guerrilheiros foi entendida como uma resposta à violência estrutural e à opressão. Uma conferência amplamente utilizada foi a do êxodo: a história da opressão do Faraó e a jornada para a terra prometida pelo deserto. A pedagogia do oprimido de Paulo Freire, a ideia de que se encare a realidade junto das pessoas, também foi uma fonte de inspiração. Aquela atmosfera revolucionária em que os padres apoiavam abertamente a luta armada ou até se tornavam guerrilheiros na Colômbia e na América Central foi muito vivida aqui em Flandres. Nós mesmos estávamos muito envolvidos no trabalho de Broederlijk Delen, e nos concentramos principalmente no que estava acontecendo na América Central: a luta de libertação dos sandinistas na Nicarágua, a luta contra o regime de Samoza, e a FMLN em El Salvador contra Duarte. 

Duarte era um presidente democrata cristão, então o movimento político estava sob pressão internacional para condenar o regime em El Salvador. Aqui também, em Bruxelas e na Antuérpia, participamos de grandes manifestações contra o CVP. O bispo salvadorenho Romero foi um dos pioneiros da Teologia da Libertação e um grande exemplo para o movimento de solidariedade aqui. Esse movimento foi formado por católicos esquerdistas progressistas, bem como trotskistas e socialistas.

Isso envolvia "o novo homem e a nova sociedade", uma nova pessoa em uma nova sociedade. A vitória dos sandinistas em 19 de julho de 1979 foi realmente um marco. Uma guerrilha que derrubou um ditador, isso não acontecia desde Cuba! Esta segunda onda revolucionária, no entanto, foi fundamentalmente diferente, justamente por causa dessa importante influência da Teologia da Libertação. O fato de que um movimento cristão estava por trás do projeto revolucionário era um sinal muito forte em um continente onde a Igreja e a religião são tão poderosas.

Foi neste contexto de solidariedade com as vítimas das ditaduras militares e com o surgimento da Teologia da Libertação que em um determinado momento decidimos abandonar nosso trabalho e ir para a América Latina. Algumas pessoas, incluindo nossos pais, não entenderam isso, mas queríamos mudar o mundo e queríamos experimentar o que significava viver nessa realidade. Não com a intenção de ficar lá. Mas como um aprofundamento da solidariedade.

Nos preparamos para a partida com uma formação na universidade latino-americana. Foram quatro meses de formação interna e em tempo integral, inspirados na Teologia da Libertação e um grupo internacional de belgas, suíços, poloneses, franceses... Também em Madri e Verona houve palestras sobre a América Latina. De manhã tínhamos aulas de espanhol e à tarde os cursos. Um dos professores era o padre de Bruges, Jan De Plancke, que morava em El Salvador, mas acabara de voltar porque a situação ali era muito perigosa. Ele veio do calor da luta e era um amigo pessoal de Romero. Jan foi uma importante fonte de inspiração para nós. Quando ele soube que queríamos ir para a América Latina, mas que as ONGs flamengas não podiam oferecer o apoio que precisávamos, foi ele quem nos aconselhou a entrar em contato com o bispo equatoriano Proaño, um bom amigo de Romero e com o mesmo espírito.

Antes de finalmente sairmos, viajamos pela primeira vez para a América Latina por três meses. Nossa primeira parada, o primeiro contato com o continente, foi em Caracas, na Venezuela. O contraste entre o piso de mármore do aeroporto e a realidade da favela onde estava a missão das irmãs Vorselaar, onde ficamos, era explícito. Jamais esquecerei o cheiro sufocante das ruas às seis da manhã. Nós havíamos nos preparado com tanta intensidade, havíamos lido, discutido, seguido o treinamento... mas nunca pensei que a América Latina teria aquele odor. Depois de Caracas, fomos ao Equador por seis semanas, uma semana ao Panamá e um mês à Nicarágua, onde em julho de 1981 foi comemorado o segundo aniversário da revolução. Apoiadores de muitos países da Europa e da América Latina participaram de uma "peregrinação" ao "novo mundo" que começou na Nicarágua. Você era recebido na imigração do aeroporto de braços abertos como um "companheiro internacionalista". O clima era de euforia!

Em novembro de 1981, quando tínhamos 26 anos, finalmente fomos ao Equador por cinco anos para trabalhar como voluntários na Diocese de Proaño, conhecida por seu compromisso com a população indígena. Para informar sobre o nosso trabalho e conscientizar as pessoas na Bélgica, foi criado o grupo de apoio 'Minga', que publicou uma revista, levantou fundos e discutiu os processos que estavam em andamento na América Latina. Essa solidariedade foi reconfortante.

Nos fixamos em Guasuntos, uma pequena cidade nos Andes, cercada por comunidades indígenas. A realidade na qual entramos – as montanhas, a altura, o frio, a pobreza, a cultura indígena – era muito diferente da atmosfera que conhecíamos sobre o movimento de solidariedade. No movimento de solidariedade em Flandres, estávamos familiarizados principalmente com a cultura urbana da América Central, mas esta era uma realidade completamente diferente. O Equador era totalmente desconhecido na Bélgica naquela época.

Na embaixada havia apenas 30 belgas registrados em todo o país. A população da província de Chimborazo, com 85% de população indígena na época, foi marcada por anos de exploração por grandes proprietários, mas não havia tradição de resistência e guerrilha. Nosso trabalho social em Guasuntos e nas comunidades circunvizinhas girou em torno dos problemas de racismo e exploração que os povos indígenas vivenciavam em seu cotidiano. O trabalho pastoral significou muito para as pessoas nesta região deserta porque eles finalmente prestaram atenção nelas. Ao mesmo tempo, também nos aproximou da visão indígena de vida e morte, de seus rituais e de sua vida comunitária.

Um levante indígena contra a opressão só ocorreu em 1990, quando retornamos à Bélgica. A CONAIE, a confederação das nacionalidades indígenas, paralisou todo o país por uma semana. As pessoas se aglomeravam nas ruas, tanto os indígenas quanto os mestiços oprimidos. As sementes desta revolta foram plantadas pela Teologia da Libertação, e em seguida, foram lançadas as fundações para a organização do Equador como um estado multinacional que reconhece a identidade indígena. Mas não foi uma revolução real nem cativante.

Quando eu estive com os zapatistas no México em 1995 para cobrir a terceira onda revolucionária para a Wereldwijd, me deparei com uma realidade que era quase uma cópia do que havíamos visto e vivido no Equador. O bispo Samuel Ruíz de San Cristóbal, em Chiapas – também um teólogo da libertação – estava em situação parecida com a de Proaño e a situação dos povos indígenas também era muito semelhante, eles poderiam revolucionar enquanto parecia que não havia praticamente nenhum movimento no Equador, o que foi difícil para mim. Eu tive um bloqueio de escrita pela primeira vez. A própria natureza da terceira onda era precisamente de que a identidade indígena estava misturada com a ideologia marxista-leninista revolucionária, e tudo isso na era da cibernética. Foi ao mesmo tempo a primeira guerrilha "pós-moderna" em um contexto maia.

Naquela época, fomos ao Equador com a ideia de que poderíamos realmente dizer alguma coisa, mas no final foi o contrário. Nós recebemos mais do que pudemos fazer. É uma experiência que nunca mais vai me abandonar e que fundamentalmente mudou a maneira como eu vejo a realidade. Perceber que existem pessoas que vivem em um contexto cultural e material totalmente diferente de você mesma, e mergulhar nesse contexto por cinco anos, compartilhando amor e sofrimento, isso eu nunca perderei. Permanence como perspectiva de vida que eu carrego comigo. Nós retornamos várias vezes, e cada vez parece que foi ontem que nós chegamos no Equador.

 

 

Raf Allaert sobre Guatemala:

"Raf, não vamos usar esta máquina copiadora para canções da igreja", disse Serge.

Entrevista e texto de Tessa Boeykens


Raf Allaert se mudou para a Guatemala como parte da congregação Scheutista em 1972, onde esteve fortemente envolvido no engajamento político das comunidades agrícolas em face da repressão do governo durante a guerra civil. Juntamente com as famílias de Serge Berten, Walter Voordeckers e Ward Capiau - padres belgas que foram assassinados na Guatemala durante a guerra civil - ele fundou a associação de solidariedade Guatebelga.

 

Em 1964, eu ingressei na congregação missionária de Scheut, que me deu a possibilidade de ir para um país em desenvolvimento. Essa foi uma vocação, da minha formação católica e da consciência social que eu tinha herdado de casa. No histórico ano de 1968, eu estava trabalhando na minha tese, inspirada pelo teólogo da secularização Dietrich Bonhoeffer e a Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez. As raízes da teologia da libertação estão na história do povo judeu, que sai da escravidão no Egito e deve passar pelo deserto - um período de frustração, sofrimento e pobreza - mas enfrenta a ressurreição da miséria. Para mim, a Teologia da Libertação significa atualizar a Bíblia, reconhecendo a dignidade humana dos "explorados da terra". Jan van de Veire, um bom amigo Scheutista que já estava na Guatemala, encorajou-me mais tarde a transformar essas idéias em prática.

Depois, como Scheutista, fui para a Guatemala pela primeira vez em 1972, como pastor na diocese de Escuintla, na costa sul. Juntamente com Jan trabalhamos em comunidades de base cristãs onde tentamos traduzir a Bíblia para a realidade do país guatemalteco e dos trabalhadores sazonais através da pedagogia dos oprimido de Paulo Freire. O próprio Jan havia criado um catecismo e uma cartilha que usamos para educar os catequistas. Dessa forma, as pessoas adquiriram uma visão crescente de sua posição como trabalhadores agrícolas, explorados até os ossos, o que permitiu que seu compromisso político crescesse. Vários desses catequistas lançaram as bases para o Comitê de Unidade Campesina (CUC) na Costa Sul, um movimento sindical de trabalhadores agrícolas. Para mim, a Teologia da Libertação também significava pôr os pés na lama como pastor. Você preside a celebração da Eucaristia, mas se o trabalho manual é necessário nas aldeias, você também participa com as pessoas de lá.

Em 1976 fui chamado a Leuven para acompanhar estudantes de teologia. Fiquei cara a cara com uma nova geração de Scheutistas que preferiram não ficar na frente do altar, mas decidiram buscar a prática a partir da inspiração cristã. Serge Berten era um deles. Impulsionado por sua própria preocupação social, Serge foi para a Guatemala. Segui-o até Puerto San José, onde o pastor ficou doente e deixou um lugar vago. Foi Serge quem me perguntou em 1979 que, quando eu soubesse que voltaria, poderia comprar uma máquina copiadora para o trabalho paroquial. Eu era muito ingênuo na época. Com o dinheiro arrecadado na loja da Oxfam de Merelbeke, comprei uma copiadora da Gestetner na Cidade da Guatemala, registrado em meu nome ... Eu sabia que Serge planejava imprimir panfletos para o Comitê Campesino!

Eu ansiava pela Guatemala que deixara em 1976, mas voltei a um país em guerra. "Raf, não vamos usar essa máquina copiadora para canções da igreja", disse Serge. Essa foi minha introdução ao CUC. Colocamos a máquina em uma sala fechada, tocamos música quando os modelos foram impressos. Estes foram panfletos estimulando a filiação ao CUC, para se organizar e esclarecer que o processo revolucionário era a única coisa que poderia levar a mudanças na Guatemala. Mulheres em trajes indígenas – membros do CUC – com uma cesta cheia de frutas graciosamente disposta sobre suas cabeças, entraram na igreja e se ajoelharam diante do altar. Então elas atravessaram a sacristia até o lugar onde os panfletos estavam e os esconderam em suas cestas. Sob os olhos da polícia, milhares de panfletos foram distribuídos na costa sul. O quartel estava bem em frente à igreja. Da torre da igreja, podíamos ver como os prisioneiros foram brutalmente espancados. Pudemos observar o tratamento degradante com as pessoas, todo o respeito pela sua humanidade foi simplesmente anulado.

A partir de 1980 tudo ocorreu muito rápido. Os membros do CUC e os catequistas foram presos e desapareceram. No final de 81, a máquina copiadora, que estava registrada em meu nome, cai nas mãos do exército. Alguns dias depois, os soldados invadem nossa casa paroquial. Não havia como voltar atrás. Primeiro eu me escondi, antes do embaixador belga pessoalmente me colocar em um avião de volta para a Bélgica.

Serge era naquela época uma figura muito proeminente dentro do CUC. Ele era um importante quadro, dentre todos aqueles catequistas e trabalhadores sazonais. Ele sempre nadou contra a corrente e assim se foi. Não se podia deixar de notá-lo. Alguns dias depois do meu voo, eles o pegaram, torturaram e mataram.

Na Bélgica, o processo de solidariedade se acelerou e muitos comitês locais na Guatemala também surgiram. Entre 1982 e 1986, houve uma explosão de pedidos de informação. Eu nunca procurei emprego naquela época porque estava constantemente trabalhando para o Comitê Flamengo da Guatemala, NCOS-11.11.11. e Broederlijk Delen. Haviam muitos encontros, eu fui convidado para falar muitas vezes e nessas ocasiões consegui arrecadar dinheiro para o CUC. O CUC sempre foi o movimento básico não-armado do Exército Guerrilheiro dos Pobres (EGP). Do EGP eles me pediram em 86 para visitar as Comunidades de População em Resistência, o CPR. Na floresta virgem de Ixcán, na fronteira com o México, as pessoas se esconderam do exército. Com o apoio de 11.11.11 eu fui ao CPR com Annemie Demedts para dar publicidade nacional e internacional depois. Essas comunidades vieram à luz, literalmente; debaixo da copa das árvores.

Nós ainda não sabemos onde estão enterrados os restos de Serge. Em 1989, com os pais de Serge, voltei à Guatemala em busca da verdade. Serge não tem atestado de óbito, sua mãe não quer assim. Os ossos ainda não foram encontrados, ele realmente vive... Juntamente com as famílias de Serge, Walter Voordeckers e Ward Capiau, todos os padres belgas que foram assassinados, eles finalmente fundaram a Guatebelga para buscar justiça para o que aconteceu durante o conflito guatemalteco. Até que a justiça seja feita. Eu também tento compensar o que eu sinto como dívida. As pessoas desapareceram e foram assassinadas da maneira mais horrível, porque as "ideologizamos" com a prática da Teologia da Libertação. As pessoas foram sacrificadas e se sacrificaram. Guatebelga é uma tentativa de corrigir alguns fatos. O passado ainda não acabou.

 

 

Luis (Ludovic) Vandaele sobre o Brasil:

"A procissão quebrou a barricada: a polícia teve que nos deixar passar porque eles eram religiosos".

Entrevista por Allan Souza Queiroz e Hanne Cottyn, texto Allan Souza Queiroz, Tradução Português-Inglês-Neerlandês Allan Souza Queiroz e Eva Willems

 

Luis Vandaele viveu e trabalhou quase 20 anos em Campina Grande, Brasil, onde serviu como padre foi trabalhar com os jovens, os trabalhadores e as comunidades de base no espírito da teologia da libertação e do educador Paulo Freire. Ele foi confrontado com a opressão durante a ditadura e a exploração dos trabalhadores no campo.


 
Eu nasci em Mouscron, em uma família católica de classe média. Graças à sua visão missionária, meus pais eram muito abertos a uma dimensão global. Desde minha infância falei holandês e francês em casa, duas tias trabalharam na Índia e meu tio nas Filipinas. Então eu cresci nessa família missionária que, é claro, influenciou minha decisão de me tornar padre. Durante o secundário, um leigo que havia estado na América Latina me disse que a região precisava de padres com uma visão aberta, que pudessem contribuir com a conscientização do povo, e realizar uma evangelização aberta.

Eu cheguei a Leuven para estudar Teologia e Missiologia em 1966. No Collegium Pro América Latina (COPAL) eu conheci os primeiros brasileiros. Trabalhei em uma tese sobre o catolicismo brasileiro, na qual estudei as mais diversas formas de vivenciá-lo, do mais tradicional ao mais revolucionário. Foi quando decidi trabalhar como padre no Brasil. Fui influenciado pela engajada igreja do belga José (Joseph) Comblin, que praticava a teologia da libertação e estava ligado aos movimentos sociais. Em 1970, tornei-me padre e voltei a Mouscron para trabalhar na paróquia local com a Jeunesse Ouvrière Chétienne (JOC). Lá descobri que a ditadura militar perseguiu o JOC brasileiro. Eles foram presos e torturados. Isso abriu meus olhos.

Mais tarde, em 1971, as autoridades tentaram reduzir o número de estudantes estrangeiros na Universidade de Leuven. Nós protestamos e fizemos greve de fome. Até passámos uma noite na delegacia depois de termos ocupado o gabinete do reitor em solidariedade aos estudantes estrangeiros.

1973 foi o ano da 'Brazil Export'. Nesse ano, Broederlijk Delen e Entraide et Fraternité produziram o documento escrito por bispos brasileiros. Sua carta denunciou a situação socioeconômica do povo no nordeste do Brasil. Não foi uma carta sobre a Igreja, foi uma análise da realidade brasileira, baseada em evidências. A publicação deste documento teve grandes conseqüências. Bispos, padres e leigos foram perseguidos e difamados pela polícia. Ao mesmo tempo, circulava também o texto de autoria de Jan Talpe que trouxe a situação da ditadura brasileira à tona. Nesta onda de solidariedade, os problemas dos trabalhadores brasileiros estavam ligados aos dos belgas. Aqui na Europa já éramos muito dependentes das multinacionais e ainda vemos as conseqüências disso.

En 1974, me mudei para Campina Grande, no nordeste do Brasil. Estava intelectualmente preparado para Brasil, porém  a realidade era completamente diferente. A ditadura era um pouco mais moderada naquela época. Nas paróquias trabalhei com as comunidades de base e apoiei os movimentos sociais, sempre respeitando sua autonomia. Estas comunidades se organizavam em sociedades amigas de bairro e trabalhavam para melhorar suas condições de vida. Ao construir ou consertar uma casa várias famílias trabalharam juntas no mutirão, uma forma de trabalho comunitário. Certos padres, a princípio, não estavam muito interessados ​​no compromisso social dos fiéis, mas encorajamos os cristãos a se tornarem ainda mais comprometidos. Também trabalhei com Jovens do Meio Popular, semelhante ao JOC, e com associações de mães, Clubes de Mães. Meu envolvimento foi influenciado pela visão e método da Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín (1968): ver, julgar e agir. Nós também usamos teatro. A paróquia economizou dinheiro para comprar materiais de construção e incentivou as pessoas a fazer tijolos e construir suas próprias casas. Vinte por cento dos tijolos foram vendidos para comprar mais cimento e areia. Era uma pequena ação social, mas eu acreditava que pequenos projetos eram a melhor maneira de apoiar as pessoas.

Outro período importante foi a invasão coletiva das Malvinas, um conjunto habitacional inacabado de 3.000 pequenas residências cujas obras ficaram paradas por mais de dois anos. Após os primeiros dias de ocupação, a polícia lançou uma barricada para impedir que as pessoas participassem da ocupação. Foi durante o período da Semana Santa e padre Charles, um padre francês, que era meu amigo e pastor, organizou uma procissão com pessoas de diferentes bairros. Essa procissão quebrou a barricada: a polícia teve que nos deixar passar porque eles próprios eram religiosos, e assim poderíamos deixar mais e mais pessoas passar para apoiar a ocupação. Naquele dia a ocupação das três mil casas foi confirmada. A luta pela moradia digna era muito importante no Brasil naquela época. O espírito de cooperação e solidariedade alimentou a relação entre diferentes grupos. Quando um grupo conquistava uma casa, isso ajudava  outro a avançar.

Mais tarde trabalhei também com a organização das trabalhadoras e trabalhadores domésticos de Campina Grande e sua luta pelos direitos sociais. Eles usavam um material de campanha da associação de trabalhadores domésticos do Recife e outros materiais de mobilização vieram do Rio de Janeiro. Muitos materiais educativos e práticas de ensino para autogestão circularam entre os grupos e comunidades.

Pessoalmente, nunca tive problemas com a ditadura, mas no campo, onde trabalhadores sem terra lutavam arduamente pelos seus direitos à terra, sei que a repressão dos proprietários de terra foi muito dura. Os bispos foram acusados ​​de serem contra o progresso. Era uma agricultura industrial muito agressiva. Trabalhei mais no contexto urbano, mas a minha visão também foi influenciada pelos conflitos nas comunidades rurais.

Durante os 19 anos que estive em Campina Grande, experimentei a mudança de uma igreja centralizada para uma igreja descentralizada que apreciava a autonomia das comunidades e leigos engajados. Ao mesmo tempo, incentivou-os a se envolver em ações sociais - no espírito do método de Paulo Freire.

Os anos no Brasil me marcaram fortemente. Eu pude participar de uma igreja socialmente engajada e também pude participar do surgimento de vários movimentos populares. Depois de 25 anos, essas experiências me ajudam até hoje em meu engajamento, no local onde eu moro e na minha solidariedade com associações que trabalham local e globalmente.

 


Eric Van der Meirsch e Isabelle Vertriest sobre a Nicarágua:

"Depois de todos estes anos na Nicarágua, estamos muito mais convencidos da importância da ecologia".

Entrevista por Hanne Cottyn e Allan Souza Queiroz, texto de Hanne Cottyn

 

Eric Van der Meirsch e Isabelle Vertriest estiveram envolvidos no movimento de solidariedade com a América Latina desde cedo. Inspirados pela Revolução Sandinista, eles se mudaram para a Nicarágua de 1985 a 1990, onde trabalharam em conjunto com a comunidade agrícola local em questões ambientais.

 

Para nós, assim como para muitos jovens nos anos 70, a chegada ao poder do socialista Salvador Allende no Chile e o subsequente golpe de Pinochet foi um momento decisivo para nossa consciência política e global. Nós fazíamos perguntas concretas sobre como nós, jovens, poderíamos contribuir para uma mudança no mundo, bem como nas forças opostas que existiam. Dos escoteiros, nosso compromisso mudou para o movimento Norte-Sul. Nós nos tornamos ativos localmente na Broederlijk Delen, 11.11.11 e em lojas de comércio justo (Oxfam worldshops), e participamos de formações sobre a injustiça global.

Era um tempo de demonstrações históricas contra mísseis e a luta contra a segregação religiosa e ideológica da sociedade belga. A solidariedade com a América Latina cresceu fortemente na Bélgica. Lembramos, por exemplo, a facilidade com que ingressos foram vendidos em "Vorst Nationaal" para um show de solidariedade nos dez anos das lojas da Oxfam em 1981. Em várias cidades surgiram iniciativas de solidariedade para refugiados políticos chilenos. Isso pode ser comparado à situação atual dos refugiados sírios. Uma banda de música chilena tocou no nosso casamento.

Quando decidimos que queríamos trabalhar juntos na América Latina, começamos a explorar o Peru em 1981. Naquela época, o país era atormentado pela ascensão do Sendero Luminoso. Na Bélgica, houve grande simpatia nos círculos esquerdistas pelo chamado movimento camponês, mas no Peru nos deparamos com o caráter ditatorial do Sendero Luminoso. Quando a revolução eclodiu na Nicarágua em 1979, era claro para nós que os sandinistas eram completamente diferentes. Uma economia controlada, mas sob um regime democrático. Em 1984, as primeiras eleições livres aconteceram. Eric foi em primeiro lugar, com uma brigada de solidariedade junto com outros cinquenta jovens belgas. Ele supostamente colheu café, mas na prática ele cavou esconderijos para as comunidades evacuadas para protegê-los dos ataques dos contra-revolucionários. Logo depois, fomos trabalhar juntos com a organização ambiental nicaraguense IRENA, com o apoio da ONG belga SocSol.

Durante os primeiros anos, trabalhamos em Jalapa, na fronteira com Honduras. Assim como muitos voluntários internacionais, nós éramos chamados de "sandalhistas" em brincadeira com a gente por causa de nossas inseparáveis sandálias. Freqüentemente tivemos que ser muito criativos na explicação de problemas ambientais complexos como a erosão, buscando uma maneira que os agricultores locais entendessem. Por exemplo, nós fomos de cidade em cidade para mostrar documentários e, para atrair as pessoas, sempre incluímos uma comédia mexicana. Em determinado momento, tivemos que deixar o norte da Nicarágua devido ao avanço dos Contras. Nos anos seguintes, trabalhamos principalmente como consultores governamentais na região de Granada.
 
Nesses cinco anos, escrevemos quase tudo o que aconteceu. Foi assim que mantivemos um grupo de solidariedade informado na Bélgica. Desde a década de 1960, muitos comitês de solidariedade com os países da América Central surgiram. Devido à contra-revolução, juntaram forças na frente anti-intervenção que, como organização coordenadora, exerceu pressão política a nível belga e europeu.
 
Em 1989, no décimo aniversário da revolução na Nicarágua, um de nossos melhores amigos, que trabalhou em um serviço de comunicação, desenhou um pôster junto com um de seus ilustradores. Foi um sucesso porque o comitê nacional de solidariedade com a Nicarágua se encarregou da imagem que também foi impressa, entre outras coisas, em copos de rum. As lojas da Oxfam vendiam esses copos, e o rum que os acompanhava era o Flor de Caña, o famoso rum da Nicarágua, mas bananas e café também foram importados da Nicarágua.
 
Desde que retornamos em 1990, a solidariedade com a América Latina diminuiu na Bélgica. Há menos participação política, a necessidade econômica diminuiu e o apoio de ONGs e do governo belga está sendo eliminado. Em relação ao meio ambiente, no entanto, ainda há uma grande preocupação, especialmente no que diz respeito à Amazônia. Depois de todos esses anos na Nicarágua, estamos muito mais convencidos da importância da ecologia. As florestas são de fundamental importância para a América Latina, mas tanto o governo da Nicarágua e várias ONGs continuam a contar com um paradigma colonial que iguala o desmatamento ao "desenvolvimento".

Ideologicamente, olhamos para trás naquele período. Para nós, o partido sandinista era socialista e pluralista, com uma visão muito interessante da democracia. Isso mudou nos últimos quinze anos. Daniel Ortega e as pessoas ao seu redor se comportam como ditadores hoje, embora não possam ser comparados a Somoza. Isso é muito difícil de aceitar para nós. Por outro lado, os movimentos sociais que sempre apoiaram a revolução tornaram-se uma força indestrutível de oposição à Ortega.
 
Nós ainda temos uma forte ligação com a Nicarágua. Em nosso trabalho atual, notamos diariamente o quanto aprendemos nesses cinco anos, por exemplo, no campo da comunicação intercultural. Num nível mais profundo, esse período mudou nossa vida, nos tornamos menos materialistas. O que torna esse período muito especial é o fato de que nossos dois filhos nasceram lá.

 

Colofão
Pesquisa e conceito da exposição: ENCUENTRO

Material de arquivo: Amsab-ISG e KADOC-KU Leuven, arquivos pessoais de Alma De Walsche, Dirk Willems, Isabelle Vertriest, Eric Van der Meirsch, Luis (Ludovic) Vandaele e Raf Allaert.

Exposição fotográfica: Tessa Boeykens, Allan Souza Queiroz, Eva Willems

Design: Patricia Rau

Slideshow: Mario Van Driessche

Coordenação: ENCUENTRO y Paule Verbruggen

Com o apoio de Amsab-ISG, KADOC-KU Leuven, Departamentos de História e Sociologia da Universidade de Gent (UGent) e o Departamento de História da Universidade Católica de Leuven (KU Leuven). 

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